Prefácio
"De súbito vi-me dentre quatro paredes". Eis o trecho de um
poema (Da cacofonia e sua visita) do livro que agora se encontra em suas mãos. A urgente recordação de que estamos
vivos pode ser mais contundente do que esperamos. O gesto
de refletir sobre a vida pode funcionar como uma espécie de
freio contemplativo no piloto automático da existência. Então, perguntamo-nos o que significa lidar com a complexidade
e incerteza que a acompanham.
O livro de Lucas de Lazari Dranski é um desfile pelos
diferentes sentimentos experimentados por todos nós desde
tempos imemoriais. Afinal de contas, quem nunca passou
pela dor de um amor contrariado (sentimento exposto de
forma direta ou metafórica em poesias como Céu e Fruto do
acaso), questionou a legitimidade do sistema no qual se insere (Guerra é Paz; Liberdade é Escravidão; Ignorância é Força) e
se recordou com saudade antecipada acerca da brevidade da
vida (Do punhal)?
Há igualmente poemas sobre sentimentos mais próprios
à nossa época, como o demônio da ansiedade (Anxietas; Do
verme), a tentação do suicídio como possibilidade de alívio
(Nota sobre o suicídio), a liquidez das relações contemporâneas
(Castelo de areia) e a descrença política (Nação; Fiat justitia et
pereat mundus).
São todos sentimentos complexos, que causam ora alegria
ora dor. Neste livro, contudo, não há medo de olhar para
essas situações de peito aberto, transformando-as em poesia. Como o cavaleiro do filme O Sétimo Selo (1957), o autor parece querer jogar uma espécie de xadrez com a Morte
para melhor conhecer a vida. Aqui, entretanto, as peças do
tabuleiro são feitas de palavras e versos - e, de fato, o livro
é tão poético que até mesmo os pequenos textos em prosa
parecem ser compostos de longuíssimos versos, injustamente
qualificados como parágrafos. É a prosa poética em seu melhor estilo.
Como sabemos, é impossível responder a todas as perguntas. É então que a bebida (Da monotonia) e o cigarro (Ode
ao cigarro) se tornam nossos companheiros, por que escreve
o autor: "A fumaça envenena o ar,/Com a determinação do
verme, que luta/constantemente para sobreviver." No livro, há
o verme que rói nossas carnes - uma referência clara a Machado de Assis em Do verme -, mas, aqui, somos nós os vermes
lutando pela sobrevivência, envenenados pela fumaça dos cigarros acendidos.
O livro é tocante porque representa questionamentos de
todos os seres vivos. Eu, por exemplo, me peguei com lágrimas
nos olhos enquanto lia Contraste, poema que me é particularmente caro e me recorda de que ainda tenho minhas próprias
questões malresolvidas. Provavelmente ele faça o mesmo com
você, caro leitor - e a razão disso não reside em algo anormal,
mas no simples fato de você estar vivo.
Ajeitando-se desajeitadamente, como em Da monotonia,
Dranski expõe honestamente os sentimentos que traduzem o
ato de viver. Eis o primeiro pilar da configuração do protesto
contra a realidade. Em um mundo onde nos entorpecemos
para evitar a vulnerabilidade, a exposição poética desta obra
é feita de tal maneira que soa como um levante em prol da
necessária reflexão acerca da existência.
A outra face deste processo se encontra no diálogo com
os clássicos, presente ao longo de todo o livro. As referências
clássicas são inúmeras, e isso o leitor realiza incontinenti.
Homero, Dante, Prometeu, Aristóteles, Sócrates, Atlas... a
lista é longa. Não por acaso, o verso com que inicio este prefácio, de alguém que repentinamente se dá conta da imensidão da existência, remonta a Dante diante das portas do
inferno "Nel mezzo del cammin di nostra vita/Mi ritrovai per
una selva oscura" e à releitura de Drummond em "No meio
do caminho tinha uma pedra/Tinha uma pedra no meio do
caminho".
Dranski segue os passos dos autores que tanto admira, espelhados eles também nos clássicos para falar sobre a dor do
tempo presente: vale lembrar que não apenas Drummond se
voltou para Dante, mas o próprio italiano se inspirou em Homero e Virgílio para relatar seu inferno pessoal no exílio injusto. De forma semelhante, o autor utiliza a poesia como arma
para expressar seu inferno pessoal, o qual, como bem sabemos,
pode habitar dentro e fora. Não somente a temática é clássica,
mas a própria linguagem dos poemas também o é - o que termina de criar o contraste entre o vetusto ideal do belo e a
sua respectiva derrocada; entre nosso mundo contemporâneo,
veloz, simplificado e, muitas vezes, estéril; um mundo onde o
poético ainda faz sentido, onde a tensão gera percepções importantes pelo contraste.
As duas faces deste protesto, o classicismo e o existencialismo, revelam algo bem mais antigo que nossos anos: que os
desafios do viver seguem, em certo sentido, semelhantes. A
busca por entender o amor, a morte, a decepção e os caminhos
injustos da política não têm resposta única nem simples e vão
passando de mão em mão, de pena em pena. São temas que
mexem com a humanidade há séculos, e certamente continuarão fazendo-o. Por isso, a referência ao clássico, aqui, não quer
igualar grandes obras canonizadas, mas mostrar que somos
mais como membros de um mesmo clube de incertezas. Essa
é a função das referências clássicas no livro: realçar o deslocamento e a continuidade simultaneamente. Uma imagem que
lembra a da estátua grega fragmentada: tão distante no tempo,
mas ainda assim ruída como todos nós.
E a resposta para o que veio antes e para o que ainda existe está na arte, no poético, na beleza. Não por acaso, o autor
não busca suas respostas num Deus providente. Pelo contrário, o Deus bíblico parece desencaixado em nosso mundo
secularizado, trazendo mais dúvidas que esclarecimentos.
Talvez a solução, mesmo, seja remeter-se a um bom romance de Kafka, autor que também se sentia deslocado diante
da burocracia de seu tempo e que aparece mais de uma vez
nos poemas de Dranski. A salvação e o esclarecimento não se encontram em outra instância que não a artística, e aí
está uma das razões pelas quais as alusões são tão importantes. Elas são mais que simples reportes literários; elas são
pequenos pontos de luz a iluminar os poemas deste livro.
Como no belo poema Branco, a essência das coisas pode ser
compreendida quando nos voltamos contemplativamente
para as obras das quais gostamos - e, se não são o bastante
para esclarecer tudo, ao menos nos ajudam a colocar as perguntas necessárias.
O livro nos ensina outrossim que a reflexão pode nem sempre ser fácil; antes, que ela é, também, o único caminho para
o verdadeiro aprendizado, para a definitiva compreensão - e
ambos abundam em meio à dura realidade da vida e de alguns
dos poemas aqui reunidos. Por isso, há igualmente os momentos de alívio, como em Homérico: "Realizei-me! Não por ter
chegado ao meu destino,/Mas pelo Ulisses que essa odisseia
fez de mim."
Se a morte e o sofrimento são implacáveis, a arte, por outro lado, é o que conseguimos deixar como marca depois que
abandonamos este plano. Dante ainda nos ensina muito com
seus versos, e este livro certamente ensinará alguém no futuro,
mesmo que daqui há muitos anos; pessoas que sequer existem
nascerão e deleitar-se-ão com este volume. A arte, portanto, é
o elemento eterno porque continua dizendo algo depois que o
autor se vai; porque atesta para o fato de que nossas questões
- humanas, demasiado humanas - não são somente nossas.
O presente livro reúne todos esses elementos, em uma linha
que começa em Homero e continua até hoje, onde o protesto contra a realidade se revela como o caminho para entender
um pouco melhor as dores do mundo, para nos recordar de
sua infindável beleza.
Luísa Coquemala
Doutoranda em Teoria Literária e Literatura
comparada pela Universidade de São Paulo